Os Assassinatos de Dendé Arcoverde

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

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Seu nome era, na verdade, André de Albuquerque Maranhão Arcoverde, sobrinho do mártir republicano norte-riograndense. Era filho de Antônia Josefa de Albuquerque Maranhão e do primo dela, André de Albuquerque Arcoverde, senhor do Engenho Estivas, em Arez. Tivera seis irmãos, Maria Cândida, José Ignácio, Emília, Maria Simoa, Joanna e um sexto que o tempo apagou seu nome, e nascera por volta do ano de 1797 (não temos a data precisa), mas morrera aos 60 anos, em 26 de julho de 1857, Era conhecido como Brigadeiro pela população, apesar de não ter sido encontrado, entre a documentação militar, nenhum documento que o atestasse como possuidor, de fato, do título; mas a família o chamava apenas de Dendé. Estudara na Europa, os historiadores inclusive afirmam que ele teria morado em Paris e Lisboa, mas haveria circulado pela Alemanha, não se formara. Quando retorna ao Brasil em 1830, aos 33 anos, não possuía nenhum diploma.

Casara-se duas vezes. Primeiro, aos 38 anos, com a prima Antônia, que dera-lhe um filho, André, mas morreu pouco depois do parto; e casou-se em segundas núpcias, aos 42 anos, com Margarida Leopoldina de Albuquerque, também uma prima, que lhe dera três filhos: Amélia, Afonso e Carolina. Isso porém não impediu que ele tomasse outras mulheres como concubinas, enquanto casado com Margarida, como Felicidade Flora Brasileira e Costa, com quem teve uma filha, Luíza Antônia, em 1842, a qual assumiu, dando-lhe seu sobrenome; e Constância Maria do Espírito Santo, em 1848 (aos 51 anos), que deu-lhe duas filhas, Emília e Idalina, que também foram reconhecidas pelo senhor de engenho. Felicidade e Constância, pelos seus sobrenomes, provavelmente eram escravas, Felicidade deveria ser uma indígena, e Constância, uma mulher negra.

Ormuz Simonetti o descreve assim:

“De estatura acima da mediana, robusto e bem conformado, Dendé Arcoverde tinha os ombros amplos e o torax saliente. Dispunha de fôrça incrível, cavaleiro emérito e ati­rador maravilhoso. Pulava agilmente uma janela, de costas. A barba negra curta, rente a face vermelho-clara, fazia res­saltar a dentadura perfeita, branca como côco ralado. A voz é alta, estertórica, audível a distâncias que as lendas multi­plicam. Os olhos rasgados, enormes, negros e luminosos, faiscavam de irritação contínua”.

Suas histórias costumam ser tenebrosas e regadas a muito sangue derramado. Sua primeira história é relatada por Câmara Cascudo em suas Actas Diurnas e tem a ver com a rusga com seu irmão 39 anos mais velho, José Ignácio. Obviamente José Ignácio era o herdeiro do engenho, apesar da irmã Maria Cândida ser ainda mais velha. Pretendendo herdar o engenho, Dendé jurou de morte o irmão, mandando matar-lhe com a naturalidade de quem encomenda carne de caça. José Ignácio, no entanto, escapou-lhe de várias emboscadas, até que resolveu fugir para a Europa, acompanhado de seu capataz de confiança, Joaquim Cardoso, deixando suas propriedades sendo administradas pelos familiares, através de uma procuração, porém ele continuaria dono das terras. Nas vésperas da viagem, Ignácio foi atingido por um tiro no braço, ferindo-o levemente, ele então resolveu pousar na casa de André de Albuquerque Maranhão, em Cunhaú, seu primo e capitão-mor das Ordenanças de Vila Flor e Arez, o senhor de engenho acreditava que estaria seguro diante das tropas que eram comandadas pelo primo.

Na manhã seguinte, os primos conversavam no alpendre da casa grande. José Ignácio estava sentado em uma espreguiçadeira, e secava o rosto com um lenço de cambraia, quando ouviu-se um dos homens que trabalhavam na olaria, em frente a casa, gritar: “Olha o tiro!”. Dois bacamartes dispararam! A bala atravessou a mão, o lenço e a cabeça do fidalgo que caiu de bruços. O capitão-mor correu em busca dos assassinos, mas não encontrou ninguém a quem pudesse acusar. Porém, quando retornou a sua casa, já encontrara Dendé de Arcoverde vestindo luto, ajoelhado diante do corpo do irmão. Declarou ao primo ter vindo buscar o querido irmão para dar-lhe sepultura adequada na capela da família. Levou-o numa liteira que fez questão de carregar. Enterrou-o com pompa, chamando a orquestra de São José de Mipibu para tocar na missa em sua honra, sob regência de Joaquim Barbosa Monteiro. Quando a missa acabou disse ao regente, com a voz trovejante que dizem que ele possuía: “Não lhe pago agora porque não tenho dinheiro que chegue. Vá para casa que receberá logo que me venha o que estou esperando”. Julgando agradar o brigadeiro, Monteiro explicou que o toque era gratuito, não havia porque se preocupar. Dendé Arcoverde franziu a testa e trovejou: “Atrevido! Querer fazer um favor ao Brigadeiro Arcoverde para sair dizendo que ele não tinha que pagar! Ousadia desse diabo! Suma-se de minha presença, depressa!”. Monteiro montou seu cavalo e disparou rezando uma Salve Rainha, dias depois o pagamento era-lhe entregue por um dos negros do brigadeiro, conhecido como Simplício, o Cobra Verde.

Porém, com a morte do irmão, seus conflitos em família não estavam acabados, sua irmã, Maria Cândida, que, como o irmão Ignácio, mantinha-se solteira, era dono do engenho Outeiro, em Canguaretama, que o irmão cobiçava. Ele, desta vez, tentou usar os meios legais para apropriar-se das terras da irmã, argumentando ou que uma mulher não devia estar à frente da administração de terras, ou que a sua irmã era louca e que, por isso, não tinha condições para administrar suas terras e seus escravos. Maria Cândida contratou como advogado o jovem Amaro Cavalcanti que, percebendo que a cliente iria perder suas terras, porque nenhum tribunal brasileiro apoiaria a causa de uma mulher solteira, ofereceu-se para casar-se com ela. Maria Cândida aceitou a proposta, colocando-lhe uma simples regra: que ele nunca exigisse cumprir suas funções nupciais, ou seja, ela não se interessava por sexo com ele. Casaram-se e Maria Cândida venceu o processo contra o irmão.

Outra de suas histórias relata a morte de sua primeira esposa, a prima Antônia Josepha, herdeira do engenho Miriri, na Paraíba. Após dar a luz ao herdeiro do brigadeiro, André, o coronel entrou em seus aposentos e passou-lhe um unguento nos cabelos, carinhosamente, dizendo que era para perfumá-los. A matrona morreu no dia seguinte, sentindo fortes dores de cabeça, que nenhum remédio apaziguava. Morrera a 7 de outubro de 1835. Um ano depois, o jovem André também morrera, com os mesmos sintomas da mãe a 25 de novembro de 1836.

A fama era que o brigadeiro cercava-se de bandidos. Qualquer um que cometesse um crime e chegasse a sua porta pedindo proteção e oferecendo em troca disto sua lealdade, era protegido pelo brigadeiro e ninguém tinha coragem de tocá-lo. Foi utilizando esses asseclas que vingou o tio, André de Albuquerque, morto em 1817. Ordenou a morte de quem havia derramado o sangue de sua família, o capitão Antônio José Leite Pinho. Primeiro, fizeram-lhe uma tentativa a bacamarte, que o brigadeiro reprovou. “Qual tiro?! Tiro faz barulho e assombra a caca. Vamos á faca. É silencioso e seguro”, teria dito. Mandou então um negro e um caboclo assassinarem o capitão, deu-lhes facas de prata, dizendo que elas estavam envenenadas e prometeu que estes nunca mais teriam necessidade nenhuma na vida se lhes trouxessem as orelhas do capitão.

Os dois homens espreitaram o capitão por dias até achar o melhor momento. E um dia, encontraram o homem descansando em uma rede, na varanda de sua casa, nas imediações da atual Praça Sete de Setembro, “tomando a fresca da tarde”. Seu neto brincava em um tapete colocados aos pés do avô. Os dois enviados de Arcoverde lançaram-se sobre ele e o esfaquearam. Não puderam levar as orelhas para o brigadeiro, pois fugiram com pressa, esquecendo para trás uma das facas com o escudo dos Albuquerque Maranhão, era o ano de 1834, dezessete anos depois da morte de Andrézinho de Cunhaú.

Os seus asseclas se apresentaram diante do coronel, e ele cumpriu o prometido: eles nunca teriam qualquer necessidade em suas vidas a partir dali. A recompensa do negro foi ser enterrado vivo, perto da casa grande do engenho de Cunhaú. Jogaram-lhe de ponta cabeça dentro do buraco. Um conqueiro foi plantado para marcar o lugar da terrível sepultura. O caboclo foi empalado na Mata das Varas, em Tamatanduba, Canguaretama. Seu corpo foi deixado lá para secar, como se mumificado, permaneceu lá, assombrando os moradores.

Uma outra história de assassinatos se passa nos limites de sua propriedade, que agora englobava também o engenho de Cunhaú, com a morte de André de Albuquerque. Logo que se tornara senhor de Cunhaú, nasceu um conflito com o senhor do engenho de Tamatanduba, Vicente Ferreira de Paiva. O brigadeiro afirmava que os limites de suas terras eram muito maiores e que Vicente Paiva estava roubando-lhe. Mandou mata-lo sem pensar duas vezes. O conflito continuou com o filho do senhor de Tamatanduba, o jovem professor Antônio Pereira Brito Paiva, que fugindo das tentativas dos jagunços do brigadeiro de findar-lhe a vida, vendeu o engenho, e foi morar no Ceará, em Fortaleza, levando a madrasta e os irmãos pequenos.

Reunindo as terras de Cunhaú e de Estivas, André Arcoverde constrói um verdadeiro feudo ao sul da capitania do Rio Grande, onde ele se torna a única lei e único juiz, como diz Ana Vale. Nove engenhos passaram a ser controlados diretamente pelo brigadeiro (7 em Cunhaú, 1 em Estivas e mais o engenho de Tamatanduba). Fazendo uma conversão hipotética do valor dessa fortuna, o valor de apenas a terra que estava sob seu poder era, em reais, de R$ 6.220.285,71. Isso sem contar as cabeças de gado (bovinos e caprinos), os animais de carga (cavalos, burros e jumentos), os escravos e as minas de ferro que sua família possuía (falaremos disso depois). Somando essa riqueza com um exército de capangas, Dendé se torna, sem dúvida nenhuma, o homem mais poderoso da capitania. Completamente intocável. Viveu assim até sua morte aos sessenta anos.

Para Saber Mais:

Ana Rosalina Vale. Do domínio da terra à política: trajetória dos Albuquerque Maranhão na formação da oligarquia.

Lúcia Bezerra de Paiva. Brigadeiro x Prof. Brito Paiva: A saga de uma família.

Luíz Antônio de Oliveira. O martírio encenado: memória, narrativa e teatralização do passado no litoral sul do Rio Grande do Norte.

Luiz da Câmara Cascudo. Livro das Velhas Figuras.