André de Albuquerque, o mártir da República

André de Albuquerque Maranhão

André de Albuquerque Maranhão

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

André de Albuquerque Maranhão nasceu em Canguaretama, em 4 de maio de 1775, filho de Antônia Josefa do Espírito Santo Ribeiro e de André de Albuquerque Maranhão. Com o mesmo nome do pai era conhecido como Andrezinho de Cunhaú, o engenho em que nascera. Sua família era muito rica, dona de boas partes das terras produtoras de açúcar ao sul da capital, Natal. Seu pai era a quinta geração que administrava o lucrativo negócio com suas plantações de cana-de-açúcar e seus escravos. Teve apenas irmãs, Luzia Antônia, que casara-se com o primo José Ignácio, senhor do engenho Belém; Antônia Josefa, que casara-se com outro primo, André, dono do engenho Estivas; e Josefa Antônia, casada com um terceiro primo, João, que possuía o engenho Miriri, na Paraíba.

Aprendeu as primeiras letras em Natal, estudando humanidades com o Dr. Antônio Carneiro de Albuquerque Gondim e, logo que atingiu a idade, foi continuar seus estudos em Recife. Morou no Rio de Janeiro e viajou a Lisboa, por volta de 1793, para frequentar o ensino superior, tornando-se bacharel. Ao retornar o Brasil, em 1800, no entanto, resolve manter-se em Recife (apesar de manter o título de Capitão-mor de Vila Flor e Arez), onde passa a frequentar a Loja Maçônica Paraíso. Em Lisboa e em discussão com os irmãos maçons, André entra em contato e tornar-se um grande defensor das ideias liberais de David Hume, John Locke e Montesquieu. Ideias que ele pôs em prática, ainda aos 26 anos, quando da chamada Conspiração dos Suassunas.

A conspiração foi um motim, organizado em Olinda, pelos irmãos Francisco (com 32 anos), José e Luiz (com 29 anos) de Paula Cavalcante de Albuquerque, proprietários do engenho Suassuna, que objetivava dar independência à Pernambuco perante o reino português. O projeto era constituir uma república na região que, com o apoio de Napoleão Bonaparte, manteria o rei português longe das terras pernambucanas e disseminaria os ideais da Revolução Francesa na América. A maçonaria, garantiam os irmãos Suassuna, garantiria essa ponte com o imperador francês. Contudo, antes deles terem a chance de realizarem qualquer coisa, foram traídos. O judas fora José da Fonseca Silva e Sampaio que denunciou ao bispo da cidade, Azeredo Coutinho, em 1801, que os Suassuna e seus amigos trocavam cartas com lojas francesas e realizavam reuniões em que “se tratavam ideias facciosas e revolucionárias sobre a liberdade”, como diz Olavo de Medeiros Filho.

Para julgar os irmãos por traição, 81 testemunhas foram ouvidas na devassa, e é na documentação deste inquérito que encontramos informações sobre o Andrézinho de Cunhaú. Também foi testemunha do processo, José Ignácio Borges, aos 25 anos de idade, que se tornaria mais tarde Capitão-Mor do Rio Grande; o padre Inácio Pinto de Almeida Castro, o Padre Miguelinho, e João Alves de Quental (guardem esse nome!). Uma coisa bem interessante sobre esse processo é que ele ocorreu em segredo para não chatear o pai dos rapazes Suassuna, o coronel Francisco Xavier Caetano de Magalhães. Os irmãos Francisco e Luiz acabaram presos por quatro anos. José fugiu para a Inglaterra, onde escondeu-se por um ano.

Apesar de assustado, Andrezinho ainda não pensa em retornar a Cunhaú, porém, em 1806, seu pai morre e cabe a ele assumir o lugar de sexto senhor da Casa de Cunhaú. E parece que ele assume bem esse lugar como podemos ver no encontro, em 1810, com o viajante Henry Koster. Vamos deixar o britânico contar sua experiência:

“No dia seguinte chegamos a Cunhaú, o engenho do coronel André d'Albuquerque Maranhão, chefe do ramo Maranhão da numerosa e distinta família dos Albuquerques. E um homem de imensas propriedades territoriais. As plantações de Cunhaú ocupam quatorze léguas ao longo da estrada e foi adquirida outra terra vizinha, igualmente vasta. Do mesmo modo, as terras que ele possui no Sertão, para pastagens do gado, supõem não inferiores de trinta e quarenta léguas, desta que é preciso andar-se três e quatro horas para vencer-se uma.

Trazia-lhe cartas dos seus amigos de Pernambuco. Encontrei-o sentado à porta, com o capelão e muitos dos seus criados e outras pessoas empregadas em seu serviço, gozando a frescura da tarde. É um homem com cerca de trinta anos, bem feito e com um talhe acima do mediano, com maneiras gentis, ou melhor, corteses, como os brasileiros de educação geralmente possuem. O coronel reside no seu engenho feudal. Seus negros e demais serviçais são numerosos Comanda. o regimento de cavalaria miliciana e o tem em bom estado, atendendo-se às condições da região. Veio para perto de mim, logo que desmontei, e lhe entreguei as cartas que levava, e ele as pôs a parte para ler com sossego. Fez-me sentar e conversou sobre varias questões, meus planos, intenções, etc. Levou-me aos aposentos reservados aos hospedes, a pequena distancia dos seus. Encontrei um bom leito, trouxeram água quente numa grande bacia de latão, e todo o necessário foi providenciado. Tudo era magnifico e até as toalhas tinham franjas. Quando acabei de vestir-me esperei ser chamado para jantar mas, com surpresa, apenas a uma hora da madrugada é que um criado veio buscar-me. Encontrei, na sala de jantar, uma comprida mesa inteiramente coberta de pratos incontáveis, suficientes para vinte pessoas. Sentamo-nos, o coronel, seu capelão, outra pessoa e eu. Quando eu havia saboreado bastante para estar perfeitamente saciado, surpreendeu-me a vinda de outro serviço, igualmente profuso, de galinhas, pasteis, etc., e ainda apareceu um terceiro, tendo pelo menos, dez especies diferentes de doces. O jantar não podia ter sido melhor preparado nem mais perfeito mesmo se fosse feito no Recife, e um epicurista inglês teria ali com que agradar seu paladar. Só foi possível retirar-me as três horas. Meu leito era ótimo e tive ainda mais prazer por não esperar encontrar um, naquelas paragens.

Pela manhã, o coronel não me quis deixar partir sem almoçar, chá, café, bolos, tudo de excelente gosto. Levou-me, em seguida, para ver seus cavalos e insistiu comigo para que escolhesse um deles, deixando ali o meu, afim de recebe-lo em melhor estado quando de minha volta, pedindo-me que substituísse meus animais de carga, ainda com boa resistência, pelos seus. Recusei aceitar seus oferecimentos.” (Henry Koster, Viagem ao Nordeste do Brasil).

A imagem do senhor de engenho, para o viajante, continua positiva em outro trecho em que ele diz que André de Albuquerque era compassivo com sua escravaria, tendo o hábito de permitir que os escravos mantivessem suas roças particulares em sua terra, não retirando dessas roças seu próprio sustento; e também que ele possuía por volta de 150 escravos, o que surpreendia Koster por ele acreditava ser necessário muito mais homens para cuidar de uma propriedade do tamanho de Cunhaú. Isso era ”uma prova da bondade do seu temperamento”.

Em 1811, ele é agraciado com o título de Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, e passa a ser o comandante da Legião Sul, que deveria proteger a fronteira austral da capitania. pois como diz Anderson Tavares de Lyra, ele gozava de grande prestígio e vasta influência, poderoso em riqueza e respeitado grandemente. Solteiro, ainda, o padre Joaquim Dias Martins, em 1853, escreve-lhe um elogio em que diz:

“Varão perfeito na sua moral, ainda reunindo as vantagens do celibato com o favor da economia doméstica, e obediência a sua velha e venerável mãe, cheio de vigor e aparências juvenis na idade de 40 anos, realçava tantas e tão belas qualidades com popularidade imensa, não só na província e em todas as convizinhas, mas em toda a parte onde era conhecido.”

Na casa-grande do engenho, Koster cita a presença de um capelão, que provavelmente era o amigo íntimo do senhor, o padre João Damasceno Xavier Carneiro, vigário de São José de Mipibu, que ordenara-se somente após sua viuvez. Antes de sua vida religiosa, no entanto, trabalhara como escrivão em São José de Mipibu, onde possuía terras. João Damasceno era naquele momento visitador do Rio Grande e do Ceará, e passava seus dias em viagens entre Recife e Cunhaú. É, inclusive a partir dele que André de Albuquerque entra em contato com as notícias sobre uma nova tentativa de independência, em 1817, que será chamada posteriormente de Revolução Pernambucana.

O movimento tinha suas raízes novamente nas lojas maçônicas, mas também no Seminário de Olinda, em que religiosos como padre Miguelinho, padre Manuel Arruada da Câmara e o próprio João Damasceno se formaram. Os ideais republicanos e liberais eram os mesmos da conspiração que fora abortada antes de poder começar, o mesmo não aconteceria desta vez. A revolução explodiu e tomou Pernambuco, instalando um novo governo, e enviando emissários as províncias para convocá-las a unirem-se a eles.

O capitão-mor da capitania do Rio Grande, José Ignácio Borges, recebeu a convocação, pois ele também havia participado das reuniões com os irmãos Suassuna, mas se posicionou contrário, e enviou um emissário para pedir reforço a segurança na fronteira guardada por André de Albuquerque. A carta de Borges chega junto com o padre João Damasceno, que trazia uma carta do primo e cunhado paraibano do capitão, João, dizendo que este apoiaria a revolução. André não soube imediatamente como reagir. Ele respondeu ao governador da capitania secamente, e viajou para Goianinha aonde suas tropas ficavam aquarteladas. Seu objetivo era preparar suas tropas, para qual decisão tomasse. João Damasceno o acompanhou e coube a este convencê-lo de participar da revolução republicana.

Dias depois, como vimos aqui, José Ignácio Borges em pessoa resolveu vir a Cunhaú conversar com André de Albuquerque. Encontrou-o ainda em Goianinha e discutiram durante toda a tarde como deveriam proceder. Ao deixar a conversa, e ver o governador cavalgar para pernoitar na casa de seu outro primo, Luís, no engenho Belém, ele encontrou com o seu confessor, o padre Antônio de Albuquerque Montenegro (também um primo) que o repreendeu com veemência. Diz Anderson Tavares de Lyra que ele teria dito:

“Já que não aproveitas-te a ocasião favorável, não vos resta outra alternativa senão segui-lo no momento com escolta fiel e prendê-lo onde o encontrardes, ou sujeitar-vos a fazer com o vosso cadáver a escada da sua fortuna; e vos direi, que se este último caso sucedesse, a Pátria vilipendiada teria em externa execração a vossa memória”

Incentivado pelo primo, Andrezinho de Cunhaú remeteu suas tropas para o engenho do primo ainda a noite, chegando a madrugada, por volta das 4h da manhã, cercando a casa grande e colocando o governador em ferros. Pela manhã, os soldados paraibanos liderados pelo seu primo, João, chegaram também ao engenho. Coube a João de Miriri escoltar José Ignácio Borges a prisão em Recife. Do engenho Belém, partiram para a aldeia de São José de Mipibu, em que diante da matriz fizeram um pronunciamento em nome da liberdade, jogando as insígnias reais da Ordem de Cristo, seu símbolo como cavaleiros e fidalgos. Marcharam em seguida para Natal, parando ainda na lagoa Parnamirim, para descansar e reanimar os seus soldados, lembrando que eles lutavam pela liberdade.

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Eles chegaram em Natal as 8 e meia da manhã, e foram recebidos pelo comandante das tropas de linha, isto é, a polícia que guardava a cidade, Antônio Germano Cavalcante. Inicialmente se esperava um conflito, porém Cavalcante rendeu-se sabiamente pois os poucos soldados de sua guarda não se comparavam aos 100 homens de cada um dos primos, somados aos 150 índios recrutados em São José do Mipibu. Cavalcante abraçou a derrota e caminhou junto aos revolucionários dando vivas a liberdade! Chegando a praça da matriz, André de Albuquerque hasteou uma versão branca da bandeira do movimento que seria a bandeira da capitania a partir de agora. Antes de tomar a Casa de Câmara e Cadeia, no entanto, os revolucionários fizeram uma oração na igreja matriz.

Na Casa de Câmara e Cadeia também não houve resistência. A noite, inclusive, um banquete já estava sendo organizado para comemorar a nova república. No banquete, afirma Anderson Tavares de Lyra, que o capitão-mor teria comentado que a sedição republicana já era organizada há mais de dez anos, com certeza fazendo referência a seus anos de mocidade em Recife.

O governo foi estabelecido na manhã seguinte. Diante do Real Erário (hoje Memorial Câmara Cascudo), André apontou os membros de seu governo provisório. Nomes conhecidos como o padre da cidade Feliciano José Dornelas e o próprio Antônio Germano Cavalcante assumiram cargos nos ministérios propostos, que foram referendados por consulta popular. Evocando a democracia grega, os nomes indicados foram votados pela população presente à praça da matriz.

Casa de Câmara e Cadeia

Casa de Câmara e Cadeia

O governo manteve-se até 25 abril, quando as tropas que estavam dando apoio ao governo, lideradas por José Peregrino Xavier de Carvalho, deixaram o Rio Grande, retornando a Paraíba. Bastou elas deixarem a cidade que os próprios homens nomeados para o governo iniciaram sua contra-revolução (o padre Feliciano José Dornelas usava o confessionário para planejar as ações contra a nova república) . Enquanto um grupo subia as escadas da Casa de Câmara e Cadeia para encontrar André de Albuquerque e seu amigo, padre João Damasceno trabalhando em suas mesas, outro ateava fogo na bandeira que tremulava na praça. Os capitães Antônio José Leite Pinho, José Alexandre Gomes de Melo, Francisco Felipe da Fonseca Pinto e Alexandre Feliciano Bandeira subiram as escadas gritando “Viva El Rey!”, e diante de André de Albuquerque perguntaram-lhe: “Quem vive?”, e este respondeu: “Viva a Pátria! Viva a Liberdade!”.

O líder da contra-revolução fora o chefe de polícia, Antônio Germano, por isso muitos historiadores afirmam ser ele o responsável pela morte de André de Albuquerque Maranhão. Porém, em depoimento, o capitão Antônio José Leite Pinho afirmou que fora ele quem atravessou a virilha do senhor de Cunhaú, expondo-lhe os intestinos com a ponta de sua espada. E, assim ferido, fora ainda jogado pela janela do primeiro andar da Casa de Câmara e Cadeia, sendo recebido por uma multidão amotinada que aos gritos de “Viva o Senhor Dom João VI!” e “Morra, tirano!”, queriam despedaçar-lhe. Só não o fez porque seu amigo, João Damasceno correu em seu auxílio. Colocou-se entre a multidão e o André ferido e ergueu sua mão dizendo que daria-lhe ali a última unção. A turba não pode intervir. Acalmou-se e se dispersou enquanto o padre rezava em latim sua ladainha. Os soldados, no entanto, avançaram e lançaram-lhe os grilhões nos pulsos e nas pernas.

Foi carregado até a prisão numa cela do Forte dos Reis Magos, como contamos aqui, onde faleceu.

“Aos vinte e seis de Abril de mil oitocentos e dezasete faleceo da vida prezente nesta freguesia tendo recebido os Sacramentos de Penitencia e Unção o Coronel André de Albuquerque Maranhão branco solteiro com a idade de quarenta annos, pouco mais ou menos. Foi sepultado nesta Matriz envolto em huma esteira depois de ser encomendado pelo Reverendo Coadjutor Simão Judas Thadeo de minha licença. E para constar fiz este termo que asignei. Feliciano José Dornelles, vigário Collado”. (Livro de Assentamentos de óbitos da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Rio Grande).

Uma história importante sobre a morte de André de Albuquerque tem a ver com aqueles que o traíram. Quando do martírio, muitos dos seus antigos apoiadores passaram a negar que o haviam ajudado, passaram a dizer que haviam sido obrigados a lutar ao lado dele. Somente o padre João Damasceno continuou ao seu lado, sendo também levado para uma cela no Forte dos Reis. Um dos traidores fora João Alvares Quental, que participara com ele das reuniões na casa dos irmãos Suassuna, que vivia agora em Natal, dono de um prospero comércio na Ribeira. Isabel Gondim que narra que quando o corpo estava sendo levado para o sepultamento, Quental ordenou que ele fosse depositado no chão, no qual subiu e o esporeou, xingando o defunto; arrancou-lhe ainda os botões de prata da farda do senhor da Casa de Cunhaú, que levou consigo “em sórdida rapinagem”, como diz Anderson Tavares de Lyra.

Para Saber Mais:

Anderson Tavares de Lyra. André de Albuquerque Maranhão: herói e mártir da liberdade no RN.

Henry Koster, Viagem a Terra do Brasil.

Luís da Câmara Cascudo, História da Cidade do Natal.

Olavo de Medeiros Filho. Aconteceu na Capitania do Rio Grande.