Autonomia e Administração Indígena (Parte 1)
Pelo Prof. Dr. Lenin Campos Soares
A administração indígena é um tema que aparece desde a carta mais antiga do Senado da Câmara de Natal, guardada no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. A primeira carta, de 1672, traz ordens do rei português Afonso VI ao Governador geral do Brasil, Afonso Furtado de Castro de Mendonça, o primeiro Visconde de Barbacena, em que ele institui o cargo de “Administrador dos Índios”, sob a autoridade do capitão-mor da Capitania. Junto a esta carta também temos a nomeação de Francisco de Almeida Veras como o primeiro administrador. Também o rei define a forma como seu vassalo será pago pelos seus trabalhos: Veras vai receber terras, que estarão em posse do seu cunhado, Lucas de Abreu, e cujos rendimentos servirão como pagamento. A carta também faz uma ressalva: “ordena que os excessos verificados na administração dos índios sejam comunicados ao Rei e ao Capitão-mor para que se tomem as devidas providências, inclusive com a remoção do cargo”.
Qual era o papel do administrador? Diz Elisa Garcia:
“Na concepção portuguesa, o indígena é incapaz de gerenciar sua própria vida, visto que não tem uma ocupação produtiva regular e, principalmente, é pagão. Dessa forma, os colonos irão administrá-los, ou seja, ensinar-lhes a fé cristã, a vestir-se e portar-se civilizadamente. Em troca, o índio irá prestar serviços ao seu administrador”
Quais serviços seriam esses?, você deve estar se perguntando. Como a escravidão indígena era proibida em tempos normais, somente admitida em guerra, mas o trabalho realizado por essa mão de obra era imprescindível para a agricultura e pecuária da capitania, o administrador alugava os braços dos aldeados para os colonos. É interessante ver que apesar dessa documentação ser clara sobre este papel do administrador, para a maior parte da historiografia brasileira, a escravidão indígena foi uma prática restrita aos primórdios da colonização, sendo uma experiência malfadada que foi inteiramente substituída pela mão-de-obra africana. A exceção se dá apenas para São Paulo e o Estado do Maranhão e Grão-Pará. O Rio Grande do Norte, no entanto, também deveria figurar nesta lista. Stuart Schwart, em Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, no entanto, faz uma ressalva importante: a escravidão africana foi um elemento fundante da economia açucareira, dos engenhos de açúcar na Bahia e em Pernambuco. Em outras regiões cuja economia não estava relacionada ao açúcar, a mão-de-obra indígena não precisou ser substituída pela africana.
Porém, quem disse que os indígenas aceitaram a situação de forma passiva? Quando obrigados a trabalhar para o administrador, os indígenas rapidamente se revoltaram contra a exploração. Em 1679, temos o primeiro conflito registrado. Os oficiais da Câmara enviam uma carta ao Bispo de Pernambuco reclamando da atuação dos padres da Companhia de Jesus, na aldeia de São Miguel do Guajiru. Nesta carta registra-se que os indígenas se amotinaram contra o administrador a tal ponto que o Padre João de Gouveia, jesuíta, estava pensando em levar os indígenas para Pernambuco. Os oficiais se desesperam porque dependiam do trabalho indígena na capitania e eles pedem ao bispo que para apaziguar os ânimos, e “os padres da Companhia de Jesus sejam substituídos em cada aldeia”. O Bispo responde aos Homens Bons que os padres, além de serem mantidos em seus postos, agora teriam todo o comando das aldeias. Três meses depois da resposta do Bispo, chega a confirmação das mãos do novo governador geral, Roque da Costa Barreto: os padres devem administrar sozinhos as aldeias.
O conflito, com certeza, continuaria se um outro elemento não interrompesse a paz do Rio Grande. Em 1681 acontecem os primeiros ataques indígenas aos colonos rio-grandenses iniciando o período que ficou conhecido como Guerra dos Bárbaros. Nessa nova situação, não é mais o trabalho (semi)escravo dos indígenas que gera conflito, mas a necessidade de uso dos guerreiros indígenas para participar das tropas do rei português. É o Coronel de Cavalaria da Ordenança e os Mestres de Campo quem disputam o controle dos indígenas com os jesuítas e o próprio capitão-mor agora.
Com a nomeação de Domingos Jorge Velho, em 1689, como Mestre de Campo do Regimento dos Paulistas, o conflito fica mais evidente. O Capitão-mor Agostinho César de Andrade tem uma estratégia óbvia para a pacificação dos indígenas que é assentá-los em aldeamentos e usar seu trabalho como a lei permitia nos tempos de paz. Velho, no entanto, tem outros planos, dado a exceção marcial instaurada. O mestre-de-campo pretende “destruir todo o gentio inimigo” ou capturá-lo como escravo. As ordens do capitão-mor eram claras, ele exigia que o mestre-de-campo deixasse a capitania, o que foi recusado pelo paulista, que dizia obedecer apenas ao governador geral, o Senado da Câmara apoia o mestre-de-campo.
O Senado inclusive chega a pedir ao capitão-mor que não reúna os indígenas capturados na guerra, os “gentio tapuia” com os “índios mansos da Aldeia” de Guajiru, pois estes fariam “maldades e traições contra os moradores (…), destruindo as roças de sustento de todos”. No entanto, os Homens Bons da Câmara dão ao capitão-mor uma alternativa. Eles aconselham-no a distribuir os capturados entre os moradores da Capitania, pois assim estes colonos teriam ajuda na criação do gado e os tapuia reparariam a destruição que causaram durante a guerra com a morte de escravos, gado e moradores. Os indígenas assim seriam melhor administrados, pois nessas casas seriam expostos a doutrina cristã.
Em agosto de 1689 uma carta do governador geral e arcebispo, Manuel da Ressurreição, chega a Câmara diretamente de Salvador. Ele recrimina a posição dos oficiais da Câmara que haviam proposto ao Capitão-mor a distribuição dos indígenas tapuias entre os moradores da Capitania. Os padres jesuítas haviam lhe contado tudo o que acontecia na longínqua capitania ao norte. Ressurreição diz, com todas as letras, que os indígenas receberiam melhor catequização e ensino da doutrina se permanecessem com os padres da Companhia de Jesus, “que eram os mais habilitados para a função”. O Governador-Geral então ordena que eles devolvam imediatamente os tapuias, “homens, mulheres e meninos” às aldeias jesuítas. O Senado da Câmara responde ao governador estranhando porque os religiosos haviam reclamado, pois não era domínio dos Padres a administração dos tapuias, pois não os haviam ainda doutrinado, eles também afirmam que os indígenas foram retirados de dentro das aldeias de forma calma e respeitosa, “tendo os responsáveis almoçado no refeitório dos padres”. A carta termina com uma ameaça velada. Eles pedem ao governador e arcebispo que mantenham seus indígenas em suas casas, pois o objetivo dos moradores nunca foi o de torná-los escravos, mas de dividi-los, assim não podendo fazer mais mal. Eles pedem que os mantenham assim até que Domingos Jorge Velho os leve embora ou que o arcebispo permita que os moradores deixem a capitania, “o que ainda não fizeram porque o Capitão-mor os impedia”. Ou seja, ou nos deixam com nossos escravos ou abandonamos esse projeto colonial de vez.
Em 1691, dois fatos interessantes acontecem. Em janeiro daquele ano um alvará real foi expedido por D. Pedro II de Portugal, que proibiu novamente o cativeiro indígena, ordenando por em liberdade todos aqueles que haviam sido vendidos como escravos, devendo-se devolver o dinheiro aos compradores, pagando a Fazenda Real uma indenização a todos. Estes indígenas capturados deveriam retornar aos aldeamentos jesuítas. Pedro II ainda fez mais. Apesar deles deverem habitar nos aldeamentos, o monarca ordenou que a administração indígena não fosse concedida aos padres, “pois era de grande prejuízo ao bem espiritual das almas”, mas sim a um dos próprios indígenas. Meses depois, em maio daquele ano, o capitão-mor Agostinho César de Andrade, obedecendo seu rei, nomeia como capitão da aldeia de Guaraíras, o tapuia dos Silva, João Vaz dos Santos. Em novembro daquele ano, o próprio governador geral do Brasil, a época Luís da Câmara Coutinho, nomeia Simão Nunes para o posto de administrador da aldeia de Guajiru. Eles colocam indígenas como administradores de seu próprio povo (mesmo que o governador geral proponha que eles estejam submetidos a autoridade dos padres superiores, é um grande avanço).
Já os indígenas que não haviam sido escravizados, e ainda viviam em suas terras, o rei português ordenou que elas fossem demarcadas e que se alguma sesmaria doada a um colono tomava dos “pobres índios” as terras que lhes pertenciam, o rei ordenava que se restituíssem as ditas terras necessárias para o sustento dos indígenas e suas famílias. Em 1695, por exemplo, Agostinho César de Andrade faz doações de 150 léguas de terras devolutas aos tapuias, fundando o Rancho Canindé, na ribeira do rio Jundiápereba, em Goianinha, que teria como administrador o próprio Canindé, cujo nome português foi João Fernandes Vieira.
A partir daí, em 1696, o comportamento da Câmara natalense parece ter mudado com os administradores. No lugar de exigências, agora vemos pedidos. Eles enviam uma carta aos padres da aldeia de Guaraíras para que enviassem 15 indígenas para a construção de uma ponte, a “Passagem de Guaraíras”, o que é respondido pelo padre Sebastião de Figueiredo. Ele responde que a aldeia tinha 88 “índios de serviço” e desse total, 17 estavam embarcados com Manuel Gonçalves Branco, 13 estavam lutando no Assu, 8 serviam na Fortaleza dos Reis Magos, 12 partiram numa barca que foi até as salinas, 4 estavam em outro barco, 8 estavam na lista para almoxarife e 1 estava na “rede” de Antônio Lopes Lisboa. Fazendo um total de 63 pessoas. Diante do exposto, o padre negou os quinze homens pedidos argumentando que uma ordem do governador geral proibia que saíssem da aldeia mais da metade dos indígenas. Por que é o padre que responde? Porque os indígenas não devia ser alfabetizados para escrever cartas.
A situação parece estar em transformação e, em 1702, três lideres indígenas, de três aldeias janduís (da ribeira do Ceará-Mirim, da ribeira do rio Cunhaú e da ribeira do Rio Potengi) fizeram um juramento de fidelidade ao rei D. Pedro II. São citados na carta que vários indígenas fizeram o “Protesto de Fidelidade à sua Majestade”, mas são citados nominalmente o “governador Janduí” e seu sobrinho e “sargento-mor Corema”, o “grande Panacu-assu, com seus seis sargentos-mores” e o grande rei Canindé, com seu irmão.
Aqui eles se comprometem a obedecer o governador geral, o capitão-mor e o principal jesuíta, eles também prometem se batizar, com suas mulheres e filhos, e manter apenas uma esposa, além de obrigar seus subordinados a manter a doutrina cristã, prometem também não consentir que seus soldados deixem a aldeia sem autorização, por escrito, que poderia ser cobrada pelos brancos e que quem não seguisse suas regras seria expulso da aldeia, sendo obrigado a viver sozinho, “como um bruto comendo porco e veado” e também a não consentir que seu povo furte ou mate o gado dos colonos. Em resumo, eles prometem administrar os seus parentes e, em troca, o rei lhes dava a posse de suas terras, fundando as aldeias de Nossa Senhora Aparecida, em Ceará-Mirim; São João Batista, em Cunhaú, e São Paulo no Potengi. Pedro II concede cidadania aos seus súditos indígenas.
Para Saber Mais:
Ângela Domingues. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII.
Maria Regina Celestino de Almeida. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro.
Marlene Silva Mariz, Maria Sylvia Porto Alegre e Beatriz Góis Dantas (org.). Documentos para a história indígena no Nordeste: Ceará, Rio Grande do Norte e Sergipe.
Nádia Farage. As muralhas do sertão: povos indígenas no Rio Branco e a colonização.