Os Mártires de Cunhaú e Uruaçu
Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares
A história dos martírio católico que elevou vinte e cinco moradores da capitania do Rio Grande a categoria de santos católicos em 15 de outubro de 2017, pelo papa Francisco, começa no engenho mais antigo da capitania, o Engenho Cunhaú. Segundo Luís Eduardo Suassuna e Marlene Mariz, este é um dos episódios mais marcantes da história potiguar devido os seus requintes de crueldade. O vilão, conta a nossa historiografia, seria o judeu alemão, do condado de Waldeck, Jacob Rabbi (que Cascudo chama de “malvado, ladrão e despudorado”). Este chegara ao Brasil em 1636, com Maurício de Nassau, e em 1638 teria chegado ao Rio Grande, acompanhando o conde em uma visita a cidade, quando conheceu Nhanduí, o líder dos janduís. Os cronistas contam que este viveu entre os Janduís por quarto anos, bem aceito por estes, casou-se com uma das tapuias, e tornou-se um amigo inestimável do Nhanduí. Trabalhava servindo de interprete entre os holandeses e aqueles indígenas, inclusive diz Suassuna e Mariz que ele teria “sido mesmo comissionado pela Companhia para manter os tapuias em amizade e boas disposições com o governo holandês”.
Em 15 de julho de 1645, após tomar conhecimento do rompimento do tratado entre Portugal e Holanda, o Tratado de Haia, que firmava uma promessa de não agressão entre as forças portuguesas e as neerlandesas, visando combater um inimigo comum: a Espanha. Foram os portugueses que quebraram o acordo, retomando naquele ano, os territórios ocupados na Bahia e em Pernambuco. Preocupado com a crescente resistência portuguesa ao domínio flamengo da colônia, Jacob Rabbi chegou ao engenho com cerca de quinhentos janduís, mais vários potiguaras, comandados por Antônio Paraupeba, e soldados holandeses. A chegar a povoação, Rabbi informou que trazia instruções e ordens de Recife e que todos os moradores se encontrassem na Igreja de Nossa Senhora das Candeias, no domingo seguinte, dia 16 de julho, para ouvirem os pronunciamentos.
Cascudo conta o massacre em seu História do Rio Grande do Norte:
“a capelinha ficou repleta. Os colonos (…) não tinham o direito de usar armas defensivas. Compareceram deixando à porta seus bastões e varapaus. O padre André de Soveral, paulista de São Vicente, com 75 anos de idade, iniciou a missa. Estava desde 1610 na capitania e fora jesuíta. Súbito, a um sinal dado de Rabbi, os Janduís entraram de roldão, tumultuosamente guinchando de alegria. E matam setenta pessoas. Soveral foi um dos primeiros a cair, apunhalado por Jererera, filho do chefe Nhanduí”.
Acrescenta Olavo de Medeiros Filho que os cadáveres foram comidos pelos indígenas e suas casas pilhadas pelos holandeses. Câmara Cascudo acrescenta no História da Cidade do Natal que os portugueses foram trucidados de joelhos. O cronista holandês, Nieuhof informa no entanto que as vítimas foram apenas trinta e sete e não setenta.
O pavor se instalou então entre os colonos portugueses. Muitos fugiram para a Paraíba, outros se esconderam na casa-forte de João Lostão Navarro, na foz da Lagoa de Papari. Eles foram atacados também. Uma pequena tropa indígena, liderada por Rabbi, atacou a casa-forte, destruindo-a e massacrando quase todos. Entre os que escaparam está João Navarro, que se refugia desta vez em Uruaçu.
Caçando Navarro, em 3 de outubro de 1645 foi a vez do ataque ao Porto de Uruaçu. Os janduís, novamente liderados por Rabbi, atacaram e seguiram o mesmo método do primeiro morticínio. Atacaram enquanto os colonos se reuniam para celebrar a eucaristia na capela da comunidade. As portas da igreja foram fechadas e contam os relatos que os indígenas arrancaram as línguas dos cristãos para que estes não proferissem orações antes de decepar-lhes os braços ou de partir crianças ao meio diante de seus pais. O celebrante, padre Ambrósio Francisco Ferro, teria sido especialmente torturado. E o camponês Mateus Moreira, mesmo enquanto seu coração era arrancado de seu peito, teria exclamado: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento!” (por isso ele tornou-se ministro da comunhão no Brasil). João Navarro, desta vez, pereceu junto com os outros colonos, despertando o desejo de vingança no seu genro, Gusmão Garstman, que era holandês e comandava as tropas do Castelo Ceulen.
A documentação holandesa descreve a situação nos seguintes termos:
“os índios brasiliensis e os tapuias mataram a todos os portugueses que puderam haver às mãos em uma redondeza de vinte léguas, de modo que aqueles lugares estão muito desolados; os selvagens tapuias querem agora fazê-lo duramente à sua vontade como donos”.
O conflito, apesar de ser interpretado hoje como de fundo religioso, por isso o conceito de mártires, ele está muito mais associado com as lutas indígenas de recuperação do seu território. Os janduís atacam a população portuguesa que ocupa uma região, ao sul da capitania, que antes lhe pertencia. O apoio holandês existe, mas é uma pauta indígena, sem sombra de dúvida. Apesar do judaísmo de Rabbi e do paganismo janduí não é uma perseguição aos cristãos que se dá aqui, afinal os holandeses também são cristãos, protestantes, mas cristãos; é uma perseguição aos primeiros colonos oriundos de Portugal. E este conflito, obviamente, causa resposta portuguesa. Ao fim do ano de 1645, João Barbosa Pinto organiza uma tropa, vinda da Paraíba, e retoma Cunhaú, matando os indígenas que ocuparam as terras do engenho.
Sobre Rabbi, segundo Cascudo, os massacres também causam sua morte já que a vingança de Gartsman não tarda. “Junte-se ao imponderável elemento de inveja pela fortuna de Rabbi, jóias, roupas, amontados dos saques aos colonos. Ódio de muitos. O mentor dos cariris era antipatizado”. Em 5 de abril de 1646 mataram-no a tiros e golpes de espada nas imediações da praça André de Albuquerque. Os janduís tomaram-lhe as dores e exigiram a entrega de Gusmão Garstman; os holandeses rolaram um longo inquérito, com numerosos depoimentos, que não chegou a resposta nenhuma, somente amansou os ânimos janduís. Quando Rolov Baro chegou para ocupar o lugar de tradutor entre os holandeses e os indígenas, a paz já havia se instalado entre os indígenas e Garstman.
Para saber mais:
Luís da Câmara Cascudo. História da Cidade do Natal.
Luís da Câmara Cascudo. História do Rio Grande do Norte.
Luís Eduardo Suassuna e Marlene Mariz. História do Rio Grande do Norte Colonial.