Natal das Antigas

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O Heroísmo de Luiz Gonzaga

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

O grande herói da Intentona Comunista é o Soldado Luiz Gonzaga. Porém, sobre sua história há uma grande polêmica. Ele nasceu na vila de Sacramento, hoje Ipanguassu, ha 27 de março de 1917, tendo dezoito anos quando explode a revolução na capital. Eram seus pais Manoel Gonzaga de Souza e Maria Conceição de Oliveira. Teve catorze irmãos, entre eles Francisco Gonzaga de Souza, policial militar (de 1939 a 1941) e Valdemar Gonzada de Souza (marinheiro, morto em 1947). Batizado em Assu, com o nome de Luiz Gonzaga de Souza, tendo como padrinhos Minervino Wanderley e Carlota de Sá Wanderley, fez a primeira comunhão aos 14 anos, junto as irmãs Maria Santina e Eunice.

Teria chegado em Natal em 29 de outubro de 1935, onde não teria tardado em entrar nas fileiras da polícia do estado. Um desejo que ele teria desde criança, segundo nossos historiadores mais tradicionais. Contudo, sua experiência teria durado apenas vinte-e-cinco dias, até ser cravado de balas pelos comunistas que tomaram o poder. Ele morreu no dia 24 de novembro, atacado enquanto fazia a guarda do Quartel da Salgadeira, hoje Casa do Estudante. Isso é o que diz nossos historiadores mais tradicionais.

Túmulo de Luiz Gonzada no Cemitério do Alecrim (Foto: Mateus Ângelo, disponível em https://todonatalense.com.br/10-figuras-ilustres-que-estao-enterradas-no-cemiterio-do-alecrim-tem-ate-ex-presidente-da-republica/)

Conta Flávio Medeiros que o cerco ao quartel da polícia se iniciou por volta das 20h, do dia 27 de novembro, e terminou dezenove horas depois quando a munição policial acabou e estes resolveram fugir pelos fundos do prédio. Durante este cerco teriam se ferido os sargentos Celso Anselmo Pinheiro e Celso Dantas de Neto, o cabo Severino Mendes e os soldados Antônio Jósimo e Antônio Gervásio de Medeiros. E a única morte teria sido de Luiz Gonzaga. A tradição diz que enquanto os militares se mantiveram abaixados, Gonzaga teria se levantado e um dos comunistas o teria alvejado. “Para ser herói nem sempre é preciso saber matar, basta que às vezes se saiba morrer”.

Transformado em herói pela policia militar em função de sua “bravura no enfrentamento aos comunistas e em defesa da legalidade” teve, posteriormente seu heroísmo contestado. É o caso do Dr. João Maria Furtado que , ao se referir aos acontecimentos de novembro de l935 em Natal, diz:

“... outro episódio a esclarecer : Elementos que tomaram parte efetiva na revolta e com atuação destacada nela, sendo presos e posteriormente condenados, entre eles Sizenando Filgueira, Ramiro Magalhães e Carlos Wander linder (...) além de outras pessoas (...) sempre afirmaram que, realmente morreu nas proximidades do quartel da policia um pobre demente que vivia perambulando pelas ruas de Natal, mas nunca fora soldado da policia militar. Entretanto o major Luis Julio resolveu “alistar”depois de morto luiz Gonzaga como soldado da policia que, assim, teve uma morte de herói” .

Sizenando Filgueira, na época militante do Partido Comunista, para o qual havia entrada em l932 e que participou ativamente do movimento (foi ele, conforme relatamos, que prendeu os comandantes da policia militar e do 21 BC), em entrevista no dia 25 de agosto de l985 para o jornal “O Poti”(Natal/RN), diz a respeito de Luiz Gonzaga : “... ele não era nem herói nem militar na época. Era apenas um débil mental”. E afirma que fora ele quem o matou “em legítima defesa.”

No dia 29 de setembro de 1985, o jornal “O Poti” publicou um artigo do jornalista Luiz Gonzaga Cortez (parte de uma série de l9 artigos publicados entre os dias 26 de maio e 24 de novembro de l985, intitulado “O comunismo e as lutas políticas no Rio Grande do Norte na década de 30”) em que o mesmo afirma que houve uma adulteração no relatório da insurreição, no qual Luiz Gonzaga teria sido inscrito como soldado depois dos acontecimentos. Essa alteração aparece, em flagrante, no livro “ Meu depoimento” de João Medeiros Filho, publicado em l937, há em anexo, o relatório do delegado auxiliar, Enock Garcia, em que, ao se referir as vítimas do movimento , consta uma relação em que não aparece o nome de Luiz Gonzaga , no entanto, em l980, em outro livro - “ 82 horas de subversão” - ao transcrever o mesmo relatório, acrescenta, como primeiro da lista, “o soldado Luiz Gonzaga, do Batalhão Policial”.

No dia l2 de outubro de l985, o jornal publica uma carta do Dr. João Medeiros, chefe de policia na época, que reconhece ter adulterado o relatório, mas que o fez “de boa fé “. Diz ele: “Quanto a mim, posso esclarecer que realmente houve uma alteração de um livro para o outro, de boa fé, visando harmonizar os textos, valendo-me da autoridade funcional que tinha como diretor do Departamento de Segurança Púbica na época da revolução”. Que boa fé é essa que faria adulterar um documento histórico? Qual a utilidade de criar um mártir?

No dia 15 de setembro de l985, o jornal “O Poti” publica uma matéria com o titulo “Jornal oficial não registrou herói”, assinada pelo mesmo jornalista, que reproduz a matéria de capa do jornal “A República” de 29 de novembro de l935. Embora o fato do jornal oficial não registrar em sua primeira edição depois do movimento o suposto herói nada signifique (podia ou não ser verdade independente do registro), o que é digno de nota na mesma matéria é uma entrevista com o escritor Norte-riograndense Manoel Rodrigues de Melo que diz “... muitos anos depois é que começaram a falar nesse soldado (...) pois durante e depois da revolução ninguém falava nesse homem”. As reportagens realizadas no jornal A República sobre o período não citam de forma alguma a morte do soldado, o que, segundo Flávio Medeiros, deveria ter sido explorado a exaustão caso tivesse de fato acontecido.

Mais uma elemento que nos força a desconstruir o heroísmo de Gonzaga é o relatório do coronel Arthur Sílio Portela, de 1936, que já detalhava que não havia nos autos do processo nenhuma referência a existência de um soldado Luiz Gonzaga e mesmo nos processos de julgamento aos quais os revoltosos participariam nenhum deles estava sendo acusado por esse crime.

A pergunta que fica é: a quem interessa a construção de herói anti-comunista? Flávio Medeiros afirma que a construção da opinião pública sobre a Intentona de 1935 já começa com um sentido de trazer terror a sociedade. Terrorismo e banditismo, extremismo e loucura são os termos que mais se associam ao movimento. Porém, o movimento nascera no seio dos militares, era preciso não apenas aterrorizar a população, mas fazer com que os militares construíssem um sentimento de revelia aquelas ideias que estavam surgindo. Nisso o “soldado” Luiz Gonzaga cabe bem. Ele é um militar morto por outros militares. É a traição da irmandade inerente a caserna. Uma maciça propaganda de seu heroísmo é instalada para criar esse sentimento de traição entre os militares. E para isso é preciso construir rituais.

É o conceito de invenção de tradições. Construindo novos rituais para festejar algo, construímos uma nova tradição que é guardada pelas pessoas. O martírio é rememorado sempre que possível, é instituído um dia, o aniversário de sua morte, em 27 de novembro, para comemorar e relembrar. Um mausoléu é construído também em 1977, com patrocínio federal, para onde são transladados os restos mortais do herói, serve de monumento, marcando na própria cidade a memória de sua história. E uma medalha, de Mérito Policial Luiz Gonzaga, para torná-lo um modelo, alguém a ser seguido pelos outros membros daquele grupo social.

Medalha Luiz Gonzaga (foto disponível em https://mpc.rn.gov.br/medalha-do-merito-policial-luiz-gonzaga/)

 

Para Saber Mais:

Flávio Silva de Medeiros. A invenção da tradição: herói-mártir soldado Luiz Gonzada.

Homero Costa, A insurreição comunista de 1935: Natal – o primeiro ato da tragédia.

João Medeiros Filho, 82 horas de subversão.