Natal das Antigas

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Alecrim: O Cemitério (Parte 3 - As Lendas)

Jazigo de João Câmara, com Hermes sentado entre duas colunas.

Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares

A consolidação do cemitério é a definição daquele espaço como lugar de referência para o crescimento urbano de Natal, para o povoamento do bairro do Alecrim e, por causa disso, a necrópole causa um impacto no imaginário social de toda a cidade, o que, como resultado, produz novas lendas, crenças e práticas que se tornam populares num novo cenário citadino. A presença do Campo Santo altera de tal forma a experiência urbana de Natal que o impacto é sentido no próprio imaginário.

Alguns registros são encontrados. Gumercindo Saraiva vai abordar, na obra Lendas do Brasil, dois capítulos relacionados ao Cemitério do Alecrim: A cruz do oitizeiro e Alma do cemitério do Alecrim assombrando vendedores de pães em plena madrugada. Diz ele:

“Oitizeiro era um logradouro que mantinha um conjunto de banheiros, beirando o Rio Potengi, ao lado da atual Avenida Rafael Fernandes, começando nas primeiras residências na Rua Apodi, em Natal. Segundo a tradição, quando começaram a construção do Cemitério do Alecrim, houve falta d’água e os serventes iam busca-la nos olheiros do Oitizeiro. Para alcançar os poços tinham que atravessar as linhas férreas da Great Western, e, dessa forma, certa vez, uma máquina, vinda de Nova Cruz, matou um operário que trazia na cabeça uma lata d’água.

Os moradores daquela redondeza chantaram uma cruz, como era tradição, marcando uma das crendices mais antigas, herdadas de Portugal. No ano de 1925, residimos por alguns meses na Rua Manuel Vitorino, bem próximo àquele instrumento (…). E, segundo ouvimos dizer, em noites escuras, as pessoas transitando à procura do Alecrim, viam o operário, com a lata na cabeça, pedindo piedade para o seu espírito, invocado naquela cruz completamente abandonada”

A segunda lenda é narrada assim:

“Na década de 30, todo o bairro do Alecrim ficou em suspense, visto que muitas pessoas assistiram, em plena madrugada, a uma alma de outro mundo, sentada no muro do cemitério, observando quem passasse pela Rua América, hoje Alberto Torres. Ainda escuro, transitava um vendedor de pão, com um enorme balaio na cabeça. E aquela figura exótica, mirando o transeunte, teria perguntado em voz maviosa:

- Que horas são? O senhor leva pão nesse balaio?

O vendedor, assustadamente, jogou o balaio no chão e saiu correndo à procura da Rua Manuel Venturino, dizendo:

- Vi uma alma do outro mundo debruçada no cemitério, pedindo pão para matar a sua fome…

O fato é que ninguém, a partir daquele momento, quis mais atravessar aquela rua, com medo da assombração. Dizem que, de tempos em tempos, era comum o aparecimento da misteriosa figura. E houve pessoas que, semanalmente, à tarde, deixaram pães em cima do muro, num gesto de clemência para com aquela alma piedosa”.

Mas em relação a esta lenda, Saraiva explica:

“Depois de 40 anos, soubemos, por amigos, que, efetivamente, numa noite de boêmia do Sr. Júlio Pinheiro do Carmo, figura popularíssima em sua mocidade, que frequentava os bares da Ribeira, teve ele o impacto de saber da morte do pai por um garçom do Majestic. Julinho, como o chamávamos na intimidade, ao saber da ocorrência, foi à casa do falecido, sendo informado que o cadáver já estava no necrotério. Como o portão central do cemitério estava fechado, Júlio Pinheiro do Carmo procurou penetrar pela lateral, isto é, pela Rua América, encontrando o morto, no caixão. Ali fez uma oração ao seu modo. Já o dia estava clareando, e o visitante, não encontrando o portão por onde penetrou, escalou o muro. Passava por ali, naquele exato momento, um vendedor de pão. E como é natural, perguntou-lhe: - meu chapa, que horas são?”

Um problema dessa explicação da Alma Assombrando Vendedores de Pão é que nenhum funeral na década de 1930 seria tão rápido. Segundo a história contada pelo cronista, Júlio do Carmo teria descoberto que seu pai morrera e no tempo de chegar em casa o caixão já teria sido levado para o cemitério e enterrado. Os velórios naquela época costumava durar pelo menos uma madrugada inteira, com o enterro acontecendo pela manhã, para a história de Julinho ser verdadeira, ele teria que ter passado pelo menos dois dias em “sua noite de boêmia”.

Saraiva dá uma segunda possibilidade de explicação:

“Como antigamente era muito comum a realização de farras dentro do cemitério do Alecrim, fatos dessa natureza ocorriam sempre. Daí existir uma versão envolvendo a figura do saudoso Luís Cortez, funcionário do Atheneu e possuidor de uma cigarreira na avenida Rio Branco (Zepelim). Luís acompanhou um enterro, já à noitinha, de debaixo de um ficus benjamim, adormeceu. De madrugada, procurou pular o muro a fim de ir para casa. Na ocasião, passava um vendedor de cuscuz, ocorrendo a mesma cena”.

O interessante desta segunda explicação é a descrição do hábito de “beber o morto” no próprio cemitério. Os amigos reuniam-se e bebiam em honra do morto. E, pelo que conta, essa homenagem não era apenas um dose de bebida, mas verdadeiras festas que deixavam muitos dos participantes bêbados.

Para Saber Mais:

Gênison Costa de Medeiros. Imaginários da morte: poética das imagens dos cemitérios brasileiros.

Gumercindo Saraiva. Lendas do Brasil.