A História Está Mudando
Por Prof. Dr. Lenin Campos Soares
Muitas pessoas acreditam que a disciplina História é imutável. Que o que aconteceu no passado não vai mudar e, por isso, ela permanece a mesma desde que foi escrita pela primeira vez com Heródoto, entre 430 e 424 a.C. Porém, como toda ciência, a História revê seus métodos, revê suas certezas e com isso evolui e é capaz de se transformar. A História aprendeu com isso que toda vez que ela se transforma, ela é capaz de observar facetas do passado que não era capaz antes. É como se, através de uma mudança de método, um microscópio mais moderno fosse entregue nas mãos do historiador, e aquilo que era invisível, de repente, se torna visível.
Acredito que as principais transformações que a História passou foram em dois momentos: no século XIX, quando o Materialismo Histórico se tornou um método de observação da realidade, que focava especialmente nas relações econômicas e na luta de classes como o motor da História; e no século XX, quando a Nova História introduziu novos temas (História da Vida Privada, História da Sexualidade, História Cultural, História dos Grupos Marginalizados, História Ambiental e História das Doenças), novos objetos (movimentos sociais como o Feminismo, Sindicalismo, movimento LGBT; grupos marginalizados como indígenas, escravos e migrantes; mentalidades de uma época; o corpo e a sexualidade; e o meio ambiente) e novos métodos (Microhistória, Análise serial, quantitativa e de redes, História comparativa e transnacional, História das Mentalidades, História Oral e Análise de Discurso).
O século XXI não quis ser diferente e já apresentou a sua grande revolução: o pensamento decolonial. Oriundo dos pensadores da América Latina e indianos, com profunda influência do marxismo gramsciano, pós-mordernismo e pós-estruturalismo, ele se funda em uma profunda crítica ao eurocentrismo e nas dinâmicas gerais do colonialismo, entendido como um processo que não se encerrou com o fim da colonização, ele ainda está vivo no cerne das sociedades humanas.
São suas principais características:
1. A localização das origens da Modernidade na conquista da América e no controle do Atlântico e não no Iluminismo ou na Revolução Industrial.
2. Ênfase na estruturação do poder por meio do colonialismo e nas dinâmicas do sistema capitalista e em suas formas de acumulação e exploração em escala global.
3. A compreensão da modernidade como fenômeno assimétrico de poder, não como um fenômeno produzido na Europa e estendido para o mundo.
4. A assimetria de poder entre a Europa e o resto do mundo implica, necessariamente, na subalternização dos povos dominados.
5. A subalternização dos povos dominados se estabelece pelo controle do trabalho e da intersubjetividade.
6. A designação do eurocentrismo/ocidentalismo como forma específica de produção do conhecimento e de subjetividades na Modernidade.
Além disso, Catherine Walsh afirma que o pensamento decolonial é uma forma de resistência e de recusa, uma luta contínua contra as colonialidades que continuam sendo impostas a grupos subalternos. A partir dessa percepção é possível observar de uma nova forma o capitalismo como também realizar críticas a inúmeras formas de dominação que continuam sendo repassadas pelos historiadores, como se a História, a ciência histórica, continuasse como ferramenta da matriz colonial que se constituiu o mundo moderno. Quer um exemplo?
A história do Egito é um excelente exemplo de como a História continua realimentando a dominação colonial. Primeiro, ainda chamamos de Egito, um nome imposto pelos dominadores gregos e romanos, a região tinha seus nomes nativos (Kemet, Ta-Merit, Hiku-Ptah), mas a convenção colonial mantém sua força. Ainda falando do Egito, os seus deuses Hórus, Ísis, Osíris, Néftis, Thoth, e vários outros são conhecidos também pelos seus nomes impostos pelos colonizadores. As cidades egípcias, Heliópolis, Hermópolis, Elefantina, Tebas, Abidos, também são tratadas pelos historiadores pelos nomes que não lhes pertencem. A História reforça o colonialismo apagando as tradições locais em nome da forma eurocêntrica.
Toda a história da África está recheada de exemplos como esse. José Rivair Macedo, em Antigas Sociedades da África Negra, comenta que continua ser um grande desafio de uma História que é eurocêntrica, reconhecer a especificidade das sociedades africanas, distinguindo suas categorias específicas para ser capaz de observar a sua realidade. Isso levanta duas discussões acaloradas: a primeira pergunta se a África tem uma Idade Média (isso também serve para a América Latina e Ásia)? Escritores africanos evitam a expressão, chamam a África de pré-colonial ou tradicional ou se limitam a indicar marcos cronológicos que limitam o estudo, sem determinar um período. A cronologia da História, inventada para a Europa, é capaz de abraçar todo o mundo? Usar o termo medieval para falar da África (ou América ou Ásia) não limitaria a percepção da realidade africana? Porque se buscamos uma medievalidade, tendemos a comparar o mundo africano a realidade europeia. Para deixar claro, observemos o chamado “feudalismo” japonês: o sistema nipônico é parecido com aquele que existe na Europa, mas não idêntico, usar o mesmo termo ajuda ou atrapalha no entendimento da realidade japonesa? Ou não deveria se rever o termo europeu? Se Idade Média é o termo que envolve o período entre os anos de 476 até 1453 (numa versão mais tradicional) ela precisa ser caracterizada não somente como era a Europa, mas precisa abraçar as realidades africanas, americanas, asiáticas e oceaniana. Se existe um feudalismo europeu e outro japonês, a definição do termo precisa ser revista para englobar as duas realidades, não apenas a europeia.
A segunda, mais profunda, fala sobre as fontes do conhecimento histórico. Inúmeros povos do continente possuem anciões que guardam a memória de seu povo. Os historiadores, quase sempre, rejeitavam esses sábios ancestrais, recusando-se a aceitá-los como fontes, criando uma História que só aceitava os conhecimentos extraídos a partir do sistema europeu de validação de verdade: a academia. José Rivair Macedo chama de “colonialismo científico”. Esta categoria conceitual reconhece que controlando o conhecimento dos povos subalternos, as potências capitalistas têm mais poder e ainda são capazes de naturalizar esse poder, legitimando assim as relações assimétricas construídas entre o centro global e as periferias.
Essa nova consciência, o “giro decolonial”, está transformando a História e nos dando acesso a realidades que não eram visíveis antes. Historiadores têm começado a enxergar outras formas de viver a realidade fora da ilusão naturalizada pela modernidade europeia-capitalista e imposta pela colonialidade. Novas categorias (a colonialidade do poder, do saber, do ser, e da natureza) nos permitem ver problemas que existiam mais não eram percebidos.
A colonialidade do poder é explicada como uma hierarquia política e cultural em que os países do centro capitalista, berço da modernidade, mantém o controle sobre aqueles que estão na periferia do sistema. É um processo sobretudo para controlar a produção e distribuição de riqueza, que se utiliza de violência (em suas várias formas) para manter e reproduzir as desigualdades. Ela possui níveis que são definidos como a colonialidade do saber, do ser e da natureza.
A colonialidade do saber fundamenta-se no eurocentrismo, uma vez que este não admite a coexistência de vários saberes, culturas e/ou modos de vida que não sejam ocidentais. Ele cria então artifícios que reprimem as outras formas de ver o mundo negando-as. Uma das formas de fazer isso é a folclorização, ou seja, a estereotipação dos saberes de outros povos, para uma forma cristalizada, arcaica, que não deveria se comparar ao “avanço trazido pela modernidade”. O eurocentrismo ainda torna possível a inferiorização de outras formas culturais, constituindo-se por meio de operações intelectuais que manipulam a realidade para parecer que os conhecimentos oriundos de outros sistemas não servissem para descrever a realidade. O principal exemplo dessa construção é o dualismo primitivos x civilização, em que se naturaliza que o primitivo estava no passado, e que no presente existe civilização, como os povos nativos existiam no Brasil desde o passado,
A colonialidade do ser, por exemplo, explica o uso do racismo, sexismo e lbgtfobia (estes últimos aparecem, em alguns autores, destacados em uma colonialidade do gênero e da sexualidade) para desqualificação dos outros e o controle de seus corpos. Existe uma única forma válida de ser que é a do europeu, branco, homem e heterossexual, essa ideia é divulgada pela cultura de massa, e todos os que fogem desse padrão são perseguidos, dominados e explorados.
A colonialidade da natureza observa como o capitalismo em suas mais variadas formas (liberalismo, neoliberalismo, extrema-direita, anarcocapitalismo, etc) propõem formas de dominação da natureza que, novamente, partem da realidade europeia. Dominar aqui pode ser entendido desde a construção de jardins a exploração de recursos naturais. É a partir de uma realidade europeia (os jardins montados no Brasil utilizam as mesmas espécies que os jardins montados nos EUA, ignorando o clima e vegetação nativa) que a relação com o mundo natural é construída.
A decolonialidade, portanto, se apresenta como uma resistência contra os padrões de poder que se impuseram ao conhecimento histórico nos últimos 500 anos, obrigando os historiadores a observaram outras formas de existência, conhecimento e poder que existiram no mundo e foram invisibilizados pelo sistema-mundo capitalista. E isso causará grandes transformações, é só sentar e assistir.
Para Saber Mais:
Elizabeth de Souza Oliveira, Marizete Lucini. O pensamento decolonial: conceitos para pensar uma prática de pesquisa de resistência. https://periodicos.ufs.br/historiar/article/view/15456
Pablo Quintero, Patrícia Figueira e Paz Concha Elizalde. Uma breve história dos estudos decoloniais. https://assets.masp.org.br/uploads/temp/temp-QE1LhobgtE4MbKZhc8Jv.pdf